Com escassez de mão-de-obra qualificada, países ricos
tentam atrair imigrantes com diploma universitário
Diogo Schelp
Gilberto Tadday |
PARCERIA ENTRE CÉREBROS O neurologista Marcelo Bigal, de 38 anos, tinha consultório em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, quando viajou para cursar pós-doutorado nos Estados Unidos, com uma bolsa da Sociedade Internacional de Cefaléia, em 2001. Seu plano era voltar, mas não pôde recusar o convite para ser professor na Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York. Neste ano, Bigal assumiu o cargo de diretor mundial para assuntos científicos de neurociências da Merck & Co., uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo. Nessa função, Bigal pretende convidar cientistas brasileiros a apresentar projetos de pesquisa que possam ser financiados pelo laboratório. "Sempre procurei abrir as portas daqui para os colegas brasileiros, porque os conheço e sei que são bons", diz Bigal |
O físico carioca Mauro Ferreira está pensando em pedir a cidadania irlandesa. Professor e pesquisador na universidade de Dublin há nove anos, o brasileiro de 39 anos destaca-se por seus estudos na área de nanotecnologia. A carreira de Ferreira poderia ser classificada, por aqueles que se preocupam com a saída de talentos para o exterior, como um caso exemplar de "fuga de cérebro". A expressão carrega a idéia, obviamente negativa, de que cada especialista que se muda para outro país, em especial quando sua formação acadêmica foi paga com dinheiro público, representa uma perda para o Brasil. Essa é uma lógica do passado, superada pelo aumento do intercâmbio econômico, cultural, científico e humano entre os países. Ou, para condensar numa só palavra, pela globalização. Da mesma forma que as nações tentam atrair investimentos, há hoje uma disputa global por trabalhadores altamente qualificados. É um tipo de migração que nada tem de ilegal, clandestina ou indesejada. Os especialistas a chamam de "circulação de talentos".
Nove em cada dez migrantes qualificados têm como destino algum país rico. Apesar do número impressionante, a demanda ainda supera fartamente a oferta, o que acirra a disputa por talentos. Os países importadores buscam não apenas cientistas, como o físico Ferreira, mas uma variedade de profissões com formação universitária, de engenheiros a gerentes de vendas. Em tese, deveria haver candidatos em abundância. Uma pesquisa realizada em 27 países pela Manpower, empresa de recrutamento e seleção com sede nos Estados Unidos, divulgada no mês passado, mostrou que os trabalhadores qualificados têm maior disposição para viver no exterior. Quase 90% dos profissionais com mestrado topariam mudar de país se surgisse uma oportunidade de carreira, contra 62% daqueles com nível educacional inferior ao ensino médio. Na prática, a demanda supera a oferta. A Noruega é um exemplo de esperanças frustradas. Com a taxa de desemprego em irrisórios 2%, as empresas daquele país simplesmente não conseguem ocupar com noruegueses todas as vagas disponíveis para engenheiros e executivos. A Noruega estabeleceu uma cota anual de 5 000 imigrantes qualificados de fora da Europa, mas as vagas jamais são totalmente preenchidas.
Os brasileiros estão entre os menos dispostos a arriscar-se no exterior. No ranking dos países que mais exportam mão-de-obra qualificada, o Brasil aparece em modesto 28º lugar. Estima-se que apenas 10% dos brasileiros que vivem no exterior tenham diploma universitário. Não é motivo para comemorar. Ao contrário do que possa parecer, exportar talentos é saudável para um país em desenvolvimento. Sobretudo se a capacidade de seu mercado de trabalho absorver esses profissionais for pequena. "Um taxista com diploma universitário em Lagos ou Bogotá seria mais útil ao país se estivesse trabalhando no exterior e enviando dinheiro para casa", disse a VEJA o cientista político austríaco Michael Jandl, do Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas de Migração, em Viena. Se o imigrante estiver atuando em sua área de especialização, tanto melhor. De pouco adianta ter um engenheiro brasileiro fazendo seu pé-de-meia como garçom em um pub inglês. Isso é o que os economistas que estudam a imigração chamam de "desperdício de cérebros".
Se esse mesmo imigrante for contratado por uma empresa de engenharia, por uma universidade ou conseguir montar o próprio negócio, poderá dar inúmeras contribuições ao país de origem. A mais relevante é o estabelecimento de uma rede de contatos profissionais que inclua alguns de seus conterrâneos. "Os imigrantes normalmente mantêm vínculos com sua família, amigos e ex-colegas de faculdade, que, muitas vezes, se transformam em relações comerciais ou científicas", diz a socióloga alemã Maren Borkert, do Fórum Internacional e Europeu para Pesquisas em Migração. Mauro Ferreira coordena um grupo de pesquisa com cinco físicos em Dublin. Dois deles são brasileiros com bolsas inteiramente financiadas pela Irlanda. Eles dificilmente teriam tido essa oportunidade, não fosse a intermediação de Ferreira, que faz questão de receber currículos do Brasil e indicações de estudantes feitas por seus ex-professores. "Não existe carta de recomendação melhor do que a palavra de alguém que você conhece", diz Ferreira. Ele também ajuda seus colegas irlandeses a escolher candidatos brasileiros para bolsas de pesquisa. Para completar, metade dos artigos científicos publicados pelo físico carioca teve a parceria de compatriotas.
Roberto Setton |
RETORNO SEGURO Dois anos depois de se formar em comércio exterior, a paulistana Aline Fazzi, de 34 anos, foi convidada a embarcar para a Suécia como analista da indústria farmacêutica em que trabalhava. Ficou dez anos por lá. Nesse período, deixou o emprego e foi para uma companhia de exportação e importação, na qual coordenava uma equipe de 200 vendedores. Fluente em inglês, italiano e espanhol, ela teve de aprender também sueco e norueguês. Há seis meses, decidiu voltar ao Brasil para ficar perto da família e se tornou consultora de comércio exterior, intermediando negócios entre empresas brasileiras e chinesas do setor têxtil. "A experiência fora do país fez com que eu tenha, hoje, mais contatos no exterior do que no Brasil", diz Aline. |
Os chineses e indianos já descobriram as vantagens de exportar talentos para estabelecer canais de negócios e redes de relacionamentos profissionais. Na China, essa preocupação é parte da política governamental desde o fim da década de 70. A estratégia foi enviar um grande número de estudantes de nível universitário ao exterior, mesmo correndo o risco de apenas uns poucos voltarem. Entre 1978 e 2006, apenas um quarto de todos os chineses que foram estudar fora do país voltou. Na Índia, a debandada de cérebros foi causada, inicialmente, por falta de oportunidades no mercado de trabalho local. Entre 1964 e 2001, 35% dos profissionais que se formaram no Instituto Indiano de Tecnologia, com filiais em sete cidades, mudaram-se para o exterior. Os resultados não poderiam ter sido melhores. "Os expatriados indianos criaram mais empresas de tecnologia da informação nos Estados Unidos do que a China, o Brasil, a Rússia e a Inglaterra juntos", disse a VEJA o indiano Ashutosh Sheshabalaya, autor do livro Made in Índia, sobre o crescimento econômico do país. Cada indiano qualificado no exterior é uma espécie de adido comercial informal da Índia.
O geneticista brasileiro Alysson Renato Muotri, que pesquisa células-tronco em um laboratório em La Jolla, nos Estados Unidos, e no mês passado foi contratado pela Universidade da Califórnia, conta um episódio que demonstra com perfeição como a exportação de talentos pode ser benéfica. Há dois anos, ele se encontrou com o presidente de uma grande empresa americana de pesquisas genéticas que acabara de abrir um laboratório para estudar células-tronco na Índia. "Eu comentei que seria ótimo ele abrir uma filial no Brasil, onde temos ótimos pesquisadores", diz Muotri. A resposta do executivo foi: "Eu não tenho nenhum contato no Brasil nem sequer saberia onde abrir um laboratório por lá. Você é o primeiro brasileiro que eu conheço. Quando olho em volta, só vejo indianos".
Gilberto Tadday | INVESTIMENTO ESTRANGEIRO Carolina Verissimo, de 30 anos, é gerente de competências estratégicas na multinacional americana Whirlpool, em Benton Harbor, pequena cidade nos arredores de Chicago. Natural de Fortaleza, Carolina foi contratada pela empresa depois de terminar seu MBA em recursos humanos nos Estados Unidos. "Se eu não tivesse vindo para cá, meu amadurecimento profissional não teria sido tão rápido", diz Carolina. Ela envia parte de seu salário à família, no Ceará, e só investe em ações de empresas brasileiras na bolsa de valores americana. |
A experiência indiana serve para ilustrar outro benefício do intercâmbio de cérebros: muitos emigrantes qualificados acabam voltando, na maioria das vezes melhores – com novas habilidades, fluência em idiomas estrangeiros e mais dinheiro – do que quando saíram. No ano passado, apenas três empresas indianas de computação e software com filiais nos Estados Unidos, sozinhas, obtiveram um em cada sete vistos de trabalho temporário para imigrantes qualificados oferecidos pelo governo americano. "Elas trazem esses engenheiros para os Estados Unidos por três ou seis anos, para receber treinamento de alta qualidade, e depois os levam de volta à Índia para trabalhar em empresas que competem conosco", reclamou recentemente o senador americano Richard Durbin. Calcula-se que 40 000 programadores indianos que trabalharam nos Estados Unidos e na Inglaterra vivem hoje em Bagalore, a capital da computação da Índia. "A única maneira de trazer de volta a mão-de-obra qualificada que foi se capacitar no exterior é criar oportunidades de trabalho em seu país de origem", diz Marco Antonio Raupp, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
A China está fazendo exatamente isso. Não com leis autoritárias que obriguem suas mentes brilhantes a retornar, mas com ofertas tentadoras de emprego. Os executivos chineses que retornam ganham, em média, três vezes mais do que aqueles que nunca se aventuraram no exterior. Desde 2006, quintuplicou o número de chineses com educação superior que decidem, a cada ano, voltar para casa. Ou seja, é preciso competir pelos talentos com a mesma moeda que os levou a emigrar. Para recuperar os cientistas, a equação é um pouco mais complicada porque, além de salário, é preciso oferecer boas condições de trabalho, como financiamento às pesquisas. "No caso do Brasil, essas condições existirão no dia em que forem criadas oportunidades de pesquisa nas empresas privadas", diz Marco Antonio Zago, presidente do CNPq, o órgão de fomento científico do Ministério da Ciência e Tecnologia. Ainda estamos longe de chegar a esse estágio: nos países ricos, 70% dos pesquisadores estão na indústria. No Brasil, ao contrário, só 20% estão fora das universidades. A melhor parte da circulação global de talentos é a constatação de que quem vai pode voltar mais experiente e preparado do que era quando partiu.
Com reportagem de Duda Teixeira
Fonte: Revista veja 16/07/2008